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O Apito Quebrado: Por Que a Arbitragem no Brasil Vive em Crise Permanente?

A realidade do futebol brasileiro

Semana após semana, o roteiro se repete no futebol brasileiro. A bola rola, os times jogam, mas o protagonista indesejado da rodada é quase sempre o mesmo: a arbitragem. Erros grotescos, falta de critérios coerentes, e uma irritante sensação de amadorismo, nos últimos meses tomaram conta de um esporte que movimenta bilhões. A paixão do torcedor é profissional. A dedicação dos atletas é profissional. Os investimentos dos clubes são profissionais. Por que, então, a estrutura que deveria garantir a lisura do jogo insiste em operar na base do improviso e da opacidade?

A verdade é dura, mas precisa ser dita: a crise da arbitragem brasileira não é fruto do acaso. Ela é um projeto. Um projeto falho, um sintoma crônico de uma estrutura doente que se recusa a evoluir. É hora de parar de olhar para a ponta do iceberg (os árbitros) e mergulhar no que esconde a verdadeira dimensão do problema. Vamos dissecar os pilares que sustentam este caos organizado.

O Mito da Profissionalização: O Árbitro de “Bico”

Imagem de um árbitro em sala de aula, exemplificando a dupla função exercida pelos mesmos.

O ponto de partida para entender como tudo isso começa, é pelo status do árbitro no Brasil. Exigimos dele a performance de um atleta de elite, mas tratamos como um trabalhador de meio período. A grande maioria dos árbitros brasileiros (da série A, inclusive!) possui outra profissão como fonte principal de renda.

Imagine a cena: o juiz que apitou o clássico no domingo, decidindo um lance que vale milhões, na segunda-feira pela manhã está em um fórum, porque é advogado; ou em uma sala de aula, porque é professor. Dá pra exigir que esse indivíduo não erre? Que não perca performance?

Isso não é uma crítica à pessoa, mas sim um atestado da ineficiência da estrutura. É como pedir a um cirurgião que opere corações apenas nos fins de semana. Como podemos esperar dedicação exclusiva, aprimoramento constante e foco absoluto de alguém que não vive 100% do futebol? A falta de contato diário com o campo, com o treinamento de elite e com a pressão do ambiente profissional não apenas aumenta a margem de erro: ela a torna inevitável.


Uma Meritocracia que Só Existe no Discurso

Ramon Abatti Abel, árbitro de futebol.
Ramon Abatti Abel - Árbitro de São Paulo x Palmeiras em 05/10/2025

Em qualquer sistema sério, os melhores são recompensados e designados para as maiores responsabilidades. No futebol brasileiro, a meritocracia da arbitragem é uma promessa vazia, uma lenda urbana. Fala-se há anos na criação de um ranking de árbitros, com critérios claros e notas baseadas em desempenho.

Estamos em outubro de 2025, e onde ele está? Ninguém sabe, ninguém viu. Se houvesse um mínimo de respeito com o consumidor final do futebol, os torcedores, os árbitros seriam classificados, e publicamente. Os melhores apitam os jogos grandes, decisivos, finais, e são indicados à FIFA. Simples, lógico e justo.

A ausência de um ranking público transforma a meritocracia em um discurso oco e abre as portas para a subjetividade. Sem dados, sem classificação, como podemos saber se o árbitro escalado para a final do campeonato é, de fato, o melhor do país? Ou se foi apenas o escolhido da vez?


O VAR: ferramenta de elite, operada no improviso.

O brilhante narrador e jornalista Jorge Iggor, em um de seus vídeos recentes, resumiu a situação com uma analogia perfeita, mais ou menos assim:

“Se eu ganhasse um avião de presente pra viajar pra onde eu quisesse… de que adiantaria? Eu não sei pilotar.”

Essa metáfora simples e brilhante serve como uma luva para o VAR no Brasil. Ganhamos o avião, a tecnologia de ponta, a promessa de viagens tranquilas e sem erros absurdos. Mas o problema é que entregamos o manche para operadores que, muitas vezes, demonstram não ter a menor ideia de como pilotar a máquina.

O que deveria ser um instrumento de precisão, feito para acabar com os erros que decidiam jogos, frequentemente se torna apenas mais uma camada de confusão. A tecnologia é de ponta (tem lá suas ressalvas, sim), mas a mão de obra que a opera parece não ter recebido o mesmo investimento em qualificação. Quando os áudios do VAR vazam, o que ouvimos raramente é uma discussão de alto nível técnico. É quase uma conversa de bar com equipamento de milhões: hesitação, dúvida, desconhecimento do protocolo e da regra, e um festival de “pra mim não foi nada” e “me parece que pegou, mas da uma olhada”. O resultado é a demora surreal e decisões que, por vezes, conseguem ser piores que o erro original de campo.

A lei de cada um

O que é pênalti hoje, pode não ser amanhã. E isso é mais claro ainda no Brasil, consequência direta da falta de profissionalização e de um comando centralizado. Com árbitros de diferentes federações, cada uma com seus próprios métodos de treinamento e formação, a padronização de critérios se torna uma utopia. Aquele toque de mão na bola que no sábado é pênalti claro, no domingo vira “bola na mão, segue o jogo”. Aquele escorregão que na quinta é falta com cartão amarelo (porque sem querer é falta também), no domingo é sem querer e ninguém marca: nem o árbitro de campo, nem o VAR.

A CBF deveria ser a comandante desta orquestra, definindo uma partitura única para suas competições. Mas em vez disso, o que vemos em campo é uma apresentação de improviso e um show de falta de critérios, onde cada árbitro decide de um jeito diferente a cada dia (e as vezes no mesmo jogo), deixando jogadores, técnicos e torcedores completamente perdidos.

A caixa preta da CBF

Agora entramos na razão desse problema crônico do futebol brasileiro.

Quando um erro grotesco como o ocorrido em São Paulo x Palmeiras no Morumbi em 05/10/2025 acontece, a resposta da entidade máxima do futebol é quase sempre um silêncio sepulcral ou, no máximo, a divulgação de uma nota sobre um “afastamento” (que nem sempre acontece!). A falta de uma postura clara e firme com relação à esse tipo de ocorrido é motivo de piada nacional. O que exatamente acontece ao se afastar um árbitro? Um curso intensivo? Um castigo na “geladeira”? Ninguém sabe.

É muito claro que não há nenhum tipo de preparação para o retorno dos árbitros após o afastamento, já que eles continuam cometendo os mesmos erros. Deixá-los na geladeira é uma boa opção? Não me parece. Os árbitros, que já tem pouquísismo contato com o jogo (perto do ideal) vão ter ainda menos! Afastar o árbitro sem nenhum tipo de preparo é atestar a completa incompetência em solucionar o problema.

O torcedor, o principal consumidor e a razão de ser deste espetáculo, é tratado como uma criança que não merece explicações. O áudio do VAR é divulgado quando convém, e ao invés de um boletim informando todas as decisões que poderiam ter outra interpretação, buscar deixar claro qual o entendimento no árbitro na tomada de decisão de cada uma delas, e vincular isso ao regulamento vigente, a CBF escolhe manter isso trancado a sete chaves, alimentando um suposto ranking de “qualidade” de árbitros que ninguém, além dela mesma, tem acesso. Em ligas sérias, os chefes de arbitragem dão entrevistas coletivas, explicam as diretrizes, admitem erros e esclarecem publicamente as orientações. Aqui, a orientação parece ser um segredo de Estado, e essa cultura da opacidade é o combustível perfeito para a desconfiança e as teorias da conspiração, salvo raríssimas exceções.

O dedo do poder

Este é o ponto que amarra toda a estrutura disfuncional, arcaica e fadada ao fracasso. Se não existe um ranking claro e público de mérito, que possa ser analisado, criticado, reestruturado, e com proposta de melhorias, quem decide qual árbitro apita qual jogo? A resposta dessa pergunta é, no mínimo, intrigante: o chefe da comissão de arbitragem e sua equipe decidem.

Como apontam diversas reportagens, o processo de seleção é subjetivo. Pense na gravidade disso: o destino de um campeonato, de investimentos milionários e da paixão de milhões de pessoas pode ser decidido por um árbitro escolhido não por sua competência comprovada em dados e numa definição clara de competência, mas talvez por afinidade, por estilo ou por qualquer outro critério pessoal. É o ápice do amadorismo, uma prática que beira o perigoso.



Por que não trazer para a arbitragem o mesmo nível de exigência dos treinadores? Por que não deixar na mão da CBF os treinamentos, e atribuir diversas licenças, com níveis de exigência cada vez mais altos, que permitam ou proíbam a arbitragem de jogos de divisões mais altas? Por que não FORMAR esses árbitros?

A arbitragem brasileira não precisa de “reciclagem”. Ela precisa de uma revolução.

  • Precisa de profissionalização, para que esses árbitros atuem em tempo integral.
  • Precisa de transparência, de meritocracia baseada em dados públicos (pelo menos com os clubes, beira o absurdo isso não ser uma realidade)
  • E, acima de tudo, de respeito pelo torcedor que ainda insiste em acreditar na beleza do jogo.

Enquanto a estrutura for amadora, subjetiva e obscura, o apito continuará sendo o som mais irritante e frustrante do nosso futebol.

1 Comentário

  1. Parabéns pela publicação em favor do desenvolvimento do futebol brasileiro. A questão arbitrária vem sendo arrastada como podem…e é hora de profissionalizar os árbitros , inicia com 10, segundo ano mais 10, os bandeirinhas, cria uma maneira de avaliação exigente e rígida que o futebol e o público agradecem e o futebol brasileiro muda de patamar. Pois quem comanda o espetáculo com 60 a 80 mil torcedores e tem a decisão em suas mãos ou através do apito, tem que ter uma carreira no mínimo de cunho profissional . Parabéns meu amigo !

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